segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Grande entrevista. Marcolino Moco. Folha 8



Hoje trouxemos um militante convicto, ex-secretário geral do MPLA, ex-primeiro – ministro, ex-secretário executivo da CPLP, jurista e doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa, Marcolino José Carlos Moco, um intelectual que bateu com a porta sobre a “patuscada corruptora”, do seu próprio partido, aliando-se as vozes da indignação, para que o país não soçobre ante a voraz saga corruptora privilegiando a blindagem de formação académica.

Folha 8 - Como en­cara esta pretensão do MPLA, que tanto se opôs a uma maior ponderação, surgir agora a pedir uma revisão?

Marcolino Moco - Prova­velmente porque pertenci à direcção do MPLA num tempo em que as decisões fundamentais (boas ou más) eram escrutinadas, efectivamente por um partido que decidia autonomamente da Presidência da República (PR), tenho dificuldades de responder a perguntas desta nature­za. Haverá hoje um MPLA que decide independente da PR? Entendo que seja difícil para quem viu sem­pre as coisas de fora com­preender assim as coisas, como as entendo eu. Mas a minha pergunta, que pode ser, naturalmente, refutada é esta: o MPLA de há al­guns tempos a esta parte, este por exemplo que ficou em tão maus lençóis com o escândalo não desmentido do BESA, pode ter alguma pretensão autónoma?
F8 - Acha que o MPLA está refém do Presiden­te Eduardo? E ainda, se a forma como ele decidiu resolver o caso BESA pode demonstrar uma identi­dade muito próxima do MPLA, como partido onde muitos dos seus dirigentes estão comprometidos com a corrupção?
MM – Homem, isso está à vista de todos. Mas enten­do os que, militantes do MPLA ou não, que nunca estiveram na sua direcção no meu tempo, não são obrigados a saber como as coisas funcionavam, numa relativamente ampla de­mocracia interna, sobre as questões fundamentais. Como deve entender, pelo espaço, tempo e oportuni­dade, não me vou debru­çar sobre isso aqui. No, entanto, no meu ponto de vista, houve dois mo­mentos, numa altura em que eu já havia sido afas­tado da direcção, em 1998. Num primeiro momento, a partir do fim da guerra civil, na base de uma es­pécie de “chantagem”, do tipo, “se vocês não me dão todo o poder não me exi­jam responsabilidades se a “terrível UNITA” (de que dirigentes influentes do MPLA e outros elemen­tos da sociedade angolana a que alguns chamam de “nação crioula” têm um mal disfarçado pavor e horror, não obstante a propalada “reconciliação nacional”) ganhar as próximas elei­ções. Ou, como muitas vezes se houve dizer, “se a UNITA tomar o poder”, como se em regime demo­crático alguém pudesse tomar o poder que sem­pre pertence ao conjunto de todo o povo, indepen­dentemente de quem ga­nhar as eleições. É isso que “obrigou” a direcção do MPLA a ceder perante aquela inqualificável al­teração da “constituição constituinte” de 1992 e ao adiamento das eleições presidenciais previstas para 2009, dando mais quatro anos de borla, a quem já lá estava há tantos anos, como queria agora o Kabila no Congo. Em se­guida, “o estratega genial”, como alguns o chamam muito carinhosamente, amedronta os pares com a balela da “probidade e tolerância 0” contra a cor­rupção, enquanto ele pro­move “mobutiscamente” o enriquecimento da família e de fiéis servidores.
F8 – Como assim? Pode explicar-se melhor?
MM - Mal a insatisfação começava a tomar conta até dos menos puritanos “anticapitalistas” da di­recção do MPLA, aí che­gou o segundo momento: foi montado o esquema BESA que se especula ter desencadeado toda a crise escandalosa do BES em Portugal, sendo no entan­to perigoso pôr o dedo na ferida nesse país (lembre­mos o destino da moção do Bloco de Esquerda contra a violação dos direi­tos humanos em Angola no parlamento português) e que, claramente, serviu para acalmar a indignação dos mais puritanos contra o selvático novo riquismo. Agora, naturalmente é o “calem-se para sempre”. Há dias uma jornalista me colocava a questão de saber se os dirigentes do MPLA aceitariam o Filo­meno dos Santos como substituto do pai. Se bem que o meu problema não é o próximo Presidente ser filho do Presidente (já há e houve muitos) mas a questão do regime, (fortes risos), a não ser que ele volte atrás, está à vista que ninguém o vai contra­riar. Agora, o que está fora de caso (risos) é, realmen­te, até onde o Presidente Santos chegou e quer che­gar para teimosamente se­gurar o poder pessoal, até para além da vida, dentro de um Estado proclamado democrático.
F8 – Está a esquecer-se do BESA
MM - Esta situação do BESA devia fazer pensar os que acham que morremos de inveja por não exer­cermos o poder e por isso criticamos ou como dizem “cospe no prato onde co­meu”. É particularmente grave, que um Banco Na­cional cubra o crédito mal parado a particulares, nas volumosas somas anun­ciadas, por ordem de um chefe de governo intocá­vel. E, na mesma altura, ou logo a seguir, não há divisas no país. Se vierem coisas piores do que isso, então adeus... Na verdade é o Presidente que, hoje, se tornou refém de si próprio.
F8 - Quais são as conse­quências, no início do ano para os órgãos e restante máquina estatal, deste OGE retificativo?
MM - Entendo que pela natureza do jornalismo, esta questão possa ser posta assim, com este carácter sobre os efei­tos imediatos. Nesta linha as minhas respostas serão sempre decepcionantes. É que eu não tenho actua­do como um opositor a um governo de Angola, o que cabe à oposição po­lítica, a que por enquan­to, não pertenço. Todas as minhas intervenções têm sido no sentido de que quando um rio está envenenado a montante, ninguém pode esperar por águas saudáveis a jusante. A minha preo­cupação é que Angola devia resolver pacifica­mente o problema de um regime que nunca produzirá bons frutos, como governar com pre­visão e, por isso, elaborar bons orçamentos; quando se vive da distribuição de avultadas riquezas líquidas a familiares, a servidores pessoais e aos que se ca­lam a algum preço, alto ou baixo.
F8 – Acha estar esgota­do o consulado do actual presidente? Melhor, não se cala por não ter rece­bido, também dinheiro fácil do erário público, como os outros dirigen­tes?
MM - Vou responder a essa questão com algum desencanto (risos), por­que não pensava que ainda houvesse alguma dúvida sobre algo de que tantas vezes falei. Em primeiro lugar, costumo desafiar, quem quer que seja que tenha passado pelo exercí­cio do poder que diga que não se aproveitou de nada, não ajudou algum parente ou amigo ou não ajudou necessitados, muitas vezes por questão de promoção da própria imagem; e cos­tumo concluir que nunca me considerei santo. Mas há uma coisa que não faço: vender a confiança, a imagem de razoável pres­tador de serviço público e de dignidade possível que conquistei entre mui­tos angolanos (nenhum homem pode pretender a conquista do coração de todos os outros, nem é preciso) e não só. Isso não é nenhum julgamento contra aqueles que tenham outras opções, até porque pode ser que não tenham tido as condições psicoló­gicas de fugir – como eu tenho conseguido ter até aqui – a tão desmedidas benesses, para abdicarem do razoável. Como me dizia um amigo há dias, e numa espécie de brinca­deira, porque sabe que eu não estou alinhado nisso, “vocês do MPLA, o vosso mal é o exagero. Não têm a noção do limite”. No tempo em que passei pela direcção do MPLA (1985-1998) havia a noção do li­mite. Havia…
F8- O executivo de Eduardo dos Santos po­deria evitar esta decala­ge?
MM - Como um gover­no imediatista e que não presta contas a ninguém, no que for essencial, pode evitar “decalages”? A úni­ca solução é a boa arte de encontrar “bodes expiatórios” e “desculpas do mau pagador”, o que nas cir­cunstâncias nem é difícil, num país onde se reprime e até se mata quem recla­me com alguma veemên­cia.
F8 - Que reflexos haverá na economia nacional, mais concretamente, na restante máquina produ­tiva?
MM - Outra resposta que se espera, provavelmente, decepcionante. Entendo muito pouco das previsões económicas. O que sou, sem rebuços é humanista. É o que me levara para a política. Por isso espero que não se agrave ainda mais a vida dos angolanos. Se há coisas que me dei­xaram de boca aberta, dos actos do Presidente San­tos, depois da domestica­ção do MPLA e do fim da guerra, foi essa de entregar o Fundo Soberano de An­gola à direcção do próprio filho. Tenho perguntado a todos os que acham que eu nem devia falar nessas coisas porque pertenço ou pertenci ao regime se isso tem alguma parecença com o tempo do partido­-único ou do tempo em que pertenci ao governo, sem nunca me ter decla­rado santo. Mas agora vou esquecer todo o espanto e vou esperar que indepen­dentemente do nepotismo do mais admirável que se pudesse esperar, que ao menos sirva esse fundo para aliviar as consequên­cias humanas da crise. Terá sido criado para coi­sa diferente, que não seja para estas situações?
F8 - Os produtos produ­zidos em Angola, ficarão mais caros, com a subida do preço do crude?
MM - Quem me leu até aqui, pode adivinhar a res­posta.
F8 – Infelizmente não estamos no campo das adivinhas e nem todos os nossos leitores o são, por isso, gostaria que não tivesse receio de respon­der. Vão ou não os preços subir no mercado local, uma vez grande parte da indústria funcionar com geradores e os direitos aduaneiros em Angola são uma autêntica rouba­lheira?
MM – Quando fala em re­ceio, não o entendo, por­que só o teria se eu tivesse responsabilidades gover­namentais ou se concor­dasse com a actual direc­ção do partido no poder, com quem, como sabe, eu divirjo em 360 graus esticados e intocados. O que quis dizer, com toda a franqueza que me caracte­riza, é que a minha linha de intervenção é mais do tipo institucional, na área jurí­dico-constitucional, onde penso residir o problema fundamental do que na li­nha de previsões económi­co-sociais. Se um dia eu voltar ao governo, que nunca será neste regime completamente à-moral e atrapalhado com a ideia de acumulação de capital para parentes e servidores, saberei rodear-me de pes­soal competente nessas áreas (risos).
F8 - Que relevância po­lítica terá o parlamento, que não fiscaliza ser cha­mado para esta situação de retificação?
MM - Esta é que é, até aqui, a questão mais importan­te. Os problemas que vive­mos derivam fundamentalmente da morte a que o Presidente Santos, com o silêncio de quem devia rea­gir minimamente contra isso, sujeitou as instituições previstas num sistema de Estado moderno que cor­responde a um território vasto e variado. Sem falar hoje de outros aspectos como o controlo da co­municação social, como é que um parlamento exerce a sua função positiva em qualquer assunto se não é ouvido pela país e se há um tribunal presidencial (Tribunal Constitucional) que lhe retira, de forma descarada, as competên­cias, quando a Constituição não cobre a defesa de determinados interesses pessoais supervenientes do titular da Presidência da República?
F8 – Conhece alguma la­titude onde tenha sido tão espezinhada e recua­da a visão de Montes­quieu sobre a separação de poderes. Como pode um Estado aceitar que o Parlamento não possa fiscalizar o Executivo. Tirando a Coreia do Norte e a China comunista co­nhece algum outro exem­plo?
MM – Fui dos primeiros juristas e cidadãos a levan­tar essa questão, apenas se tinha anunciado a possi­bilidade de se organizar o Estado angolano tal como está hoje (totalmente en­tregue a uma pessoa), an­tes da aprovação da Cons­tituição de 2010. Bom, esta situação agora agravou-se porque vendo-se que ha­via uma lacuna naquela “constituição” para pro­teger completamente os interesses pessoais do ac­tual e longevo titular da Presidência da República, o Tribunal Constitucio­nal (deve ler-se “tribunal presidencial eduardista”) concluiu a proclamação do actual Presidente da República em monar­ca absoluto (v. acórdão 319/2013) depois de ter proclamado o filho José Filomeno dos Santos seu príncipe herdeiro (v. acór­dão 233/2013). É um regi­me que pouco tem a ver com a China actual de “um Estado e dois sistemas”, onde o Presidente é sujei­to ao controlo do partido no poder e ao princípio da alternância geracional não nepotista, obrigatória.
F8 – O MPLA com esta acção mostra sentido de Estado ou trata os depu­tados como uma espécie insignificante?
MM - A resposta à primei­ra pergunta serve aqui.
F8 – Haverá reflexos dra­máticos nos organismos sociais?
MM- Serve a res­posta à pergunta 4.
F8 – Acha que se respon­der como ficará a Saúde, a Educação e outros sec­tores sociais, poderá ser perseguido. Teme por um assassinado, por isso não está a vontade, mesmo estando em Lisboa?
MM – Esta é uma questão que para quem tem acom­panhado o meu percur­so, só pode ser entendida como sendo feita por um “advogado do diabo” (ri­sos). Mesmo antes de en­trar na “idade da cinza”, em que, como dizia o ve­lho Mendes de Carvalho, já não há nada para quei­mar, sempre entendi que se tiver que morrer por defender uma paz alicer­çada num mínimo de jus­tiça, que venha esta morte antecipada. A morte é uma estrada por que todos, até os assassinos dos outros terão de passar, deixando, no entanto, um legado de desumanidade e escuridão atrás de si. Veja os raios de esperança que deixa­ram Sócrates, Jesus Cristo, Maathma Gandi e o Pas­tor Luther King, apesar de terem sido assassinados, alguns, tão precocemente, por defenderem o perdão, o amor e a transformação positiva?!
F8 – Independentemente do que respondeu antes, a vida das populações vai ou não piorar, na sua visão?
MM – Insiste! (risos). Na verdade são questões que devem ser colocadas ao go­verno que tem os recursos e as reservas. Como leigo na matéria não posso pre­ver e depois ser desmenti­do pelos factos, amanhã. O que faço é votos para que a vida não piore mais do que já está, especialmente para as camadas mais so­fridas da população. Por vezes, dá a impressão, que é sadicamente tratada. Veja-se os desalojamentos e demolições de casas de pobres, para propiciar a tal acumulação primitiva do capital para uma minoria; e o mau trato às quitandei­ras e jovens vendedores de rua, sem incentivos de outras actividades fora das cidades, especialmente de Luanda!
F8 – O que acha pessoal­mente, sobre toda esta forma de gestão da má­quina do Estado?
MM - Tudo dito, antes.
F8 - Repito, considera estar a ser bem gerida a máquina do Estado, numa altura até que o ex-minis­tro das Finanças, regres­sa agora a governador do BNA. Afinal o MPLA tem ou não quadros, pois são sempre os mesmos a ro­dar todos os postos e a perceberem de tudo.
MM – Não sei como não entendeu a resposta a essa questão em devida altura. Também repito: com um regime pessoalizado como o de Angola, não é possível uma boa gestão da máqui­na do Estado de um terri­tório e complexidade tão vastas e variadas. E como também referi à sua cole­ga do Terra Angolana, não importa se os quadros são novos ou velhos, porque o comando é só um e sem­pre o mesmo
F8 - Acredita que o au­mento do preço dos com­bustíveis vão conseguir equilibrar as contas do Estado?
MM – Como lhe disse de­veriam os angolanos per­guntar; para que serve afi­nal o Fundo Soberano de Angola?
F8 – Qual a receita que apresentaria, neste mo­mento, para uma melhor gestão da coisa pública?
MM - A reposta já foi dada ao longo da entrevista: quem espera por águas puras a jusante de um rio a montante envenenado só se aperceberá quando desfalecer ou lhe acon­tecer o pior; como quem espera por “boa gestão da coisa pública” num regime “pessoalizado” só colherá algumas quimeras.
Em todas as minhas in­tervenções eu coloco este grande desafio: apresentemos, efectivamente, uma lição à África e ao mundo: esqueçamos um passado inútil que já não se recupe­ra, perdoemo-nos e cons­truamos, claramente, um regime que sirva, minima­mente, a todos.
Tenho conversado sobre isso com líderes da opo­sição e o MPLA do Presi­dente dos Santos não des­conhece as minhas ideias. Acredito que um dia o bom senso despertará as consciências dos homens da elite política da minha geração, a tempo que futu­ras gerações não resolvam isso de forma inesperada. Os sinais não andam muito longe e isso não se resolve com eleições sucessiva­mente armadilhadas, para a UA, a ONU e UE verem.
F8– Qual a sua visão, como conhecedor de uma máquina que pede sempre ao povo para pa­gar impostos, mas eles continuam com tudo sub­vencionado, inclusive os combustíveis?
MM – Há uma subvenção de combustíveis que só fa­vorece dirigentes e afins? Isso para mim é uma novi­dade e repito, na minha hu­mildade, que não domino todos os aspectos da vida económica do país, hoje. Estando eu no governo (é preciso lembrar que saí do governo vai fazer 19 anos, em Junho) a subvenção aos combustíveis era geral e era entendida como ne­cessária para aliviar a vida das populações em situa­ção de guerra. Uma ten­tativa de alterar a situação para melhorar os aspectos macro-económicos teve de ser suspensa, devido às reacções negativas, por iniciativa do Presidente da República.
Aproveito para reiterar que o que está mal não é, em si, a máquina governa­tiva mas o regime material que dirige Angola, que em vez de corrigir o que esta­va mal no regime do par­tido único e o que funcio­nou durante a guerra pós eleitoral faz o pior: entrega todo o poder a uma pessoa a quem deixa fazer tudo o que quer.
Também, quem inventou que governantes devem chamar-se “dirigentes”, foi infeliz. Deviam chamar-se servidores. Por isso é que muitos se acham superio­res ao resto da sociedade e “donos da vida e da morte” dos restantes humanos.
Folha 8. Edição 1222 de 31 de Janeiro de 2015.

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