Hoje trouxemos um
militante convicto, ex-secretário geral do MPLA, ex-primeiro – ministro,
ex-secretário executivo da CPLP, jurista e doutorando em Direito Constitucional
na Universidade de Lisboa, Marcolino José Carlos Moco, um intelectual que bateu
com a porta sobre a “patuscada corruptora”, do seu próprio partido, aliando-se
as vozes da indignação, para que o país não soçobre ante a voraz saga
corruptora privilegiando a blindagem de formação académica.
Folha 8 - Como
encara esta pretensão do MPLA, que tanto se opôs a uma maior ponderação,
surgir agora a pedir uma revisão?
Marcolino Moco -
Provavelmente porque pertenci à direcção do MPLA num tempo em que as decisões
fundamentais (boas ou más) eram escrutinadas, efectivamente por um partido que
decidia autonomamente da Presidência da República (PR), tenho dificuldades de
responder a perguntas desta natureza. Haverá hoje um MPLA que decide
independente da PR? Entendo que seja difícil para quem viu sempre as coisas de
fora compreender assim as coisas, como as entendo eu. Mas a minha pergunta,
que pode ser, naturalmente, refutada é esta: o MPLA de há alguns tempos a esta
parte, este por exemplo que ficou em tão maus lençóis com o escândalo não
desmentido do BESA, pode ter alguma pretensão autónoma?
F8 - Acha que o
MPLA está refém do Presidente Eduardo? E ainda, se a
forma como ele decidiu resolver o caso BESA pode demonstrar uma identidade
muito próxima do MPLA, como partido onde muitos dos seus dirigentes estão
comprometidos com a corrupção?
MM – Homem, isso
está à vista de todos. Mas entendo os que, militantes do MPLA ou não, que
nunca estiveram na sua direcção no meu tempo, não são obrigados a saber como as
coisas funcionavam, numa relativamente ampla democracia interna, sobre as
questões fundamentais. Como deve entender, pelo espaço, tempo e oportunidade,
não me vou debruçar sobre isso aqui. No, entanto, no meu ponto de vista, houve
dois momentos, numa altura em que eu já havia sido afastado da direcção, em
1998. Num primeiro momento, a partir do fim da guerra civil, na base de uma espécie
de “chantagem”, do tipo, “se vocês não me dão todo o poder não me exijam
responsabilidades se a “terrível UNITA” (de que dirigentes influentes do MPLA e
outros elementos da sociedade angolana a que alguns chamam de “nação crioula”
têm um mal disfarçado pavor e horror, não obstante a propalada “reconciliação
nacional”) ganhar as próximas eleições. Ou, como muitas vezes se houve dizer,
“se a UNITA tomar o poder”, como se em regime democrático alguém pudesse tomar
o poder que sempre pertence ao conjunto de todo o povo, independentemente de
quem ganhar as eleições. É isso que “obrigou” a direcção do MPLA a ceder
perante aquela inqualificável alteração da “constituição constituinte” de 1992
e ao adiamento das eleições presidenciais previstas para 2009, dando mais
quatro anos de borla, a quem já lá estava há tantos anos, como
queria agora o Kabila no Congo. Em seguida, “o estratega genial”, como alguns
o chamam muito carinhosamente, amedronta os pares com a balela da “probidade e
tolerância 0” contra a corrupção, enquanto ele promove “mobutiscamente” o
enriquecimento da família e de fiéis servidores.
F8 – Como assim? Pode explicar-se melhor?
MM - Mal a insatisfação começava a tomar
conta até dos menos puritanos “anticapitalistas” da direcção do MPLA, aí chegou
o segundo momento: foi montado o esquema BESA que se especula ter desencadeado
toda a crise escandalosa do BES em Portugal, sendo no entanto perigoso pôr o
dedo na ferida nesse país (lembremos o destino da moção do Bloco de Esquerda
contra a violação dos direitos humanos em Angola no parlamento português) e
que, claramente, serviu para acalmar a indignação dos mais puritanos contra o
selvático novo riquismo. Agora, naturalmente é o “calem-se para sempre”. Há
dias uma jornalista me colocava a questão de saber se os dirigentes do MPLA
aceitariam o Filomeno dos Santos como substituto do pai. Se bem que o meu
problema não é o próximo Presidente ser filho do Presidente (já há e houve
muitos) mas a questão do regime, (fortes risos), a não ser que ele volte atrás,
está à vista que ninguém o vai contrariar. Agora, o que está fora de caso
(risos) é, realmente, até onde o Presidente Santos chegou e quer chegar para
teimosamente segurar o poder pessoal, até para além da vida, dentro de um
Estado proclamado democrático.
F8 – Está a esquecer-se do BESA
MM - Esta situação do BESA devia fazer pensar
os que acham que morremos de inveja por não exercermos o poder e por isso
criticamos ou como dizem “cospe no prato onde comeu”. É particularmente grave,
que um Banco Nacional cubra o crédito mal parado a particulares, nas volumosas
somas anunciadas, por ordem de um chefe de governo intocável. E, na mesma
altura, ou logo a seguir, não há divisas no país. Se vierem coisas piores do
que isso, então adeus... Na verdade é o Presidente que, hoje, se tornou refém
de si próprio.
F8 - Quais são as consequências, no início do ano para os órgãos e
restante máquina estatal, deste OGE
retificativo?
MM -
Entendo que pela natureza do jornalismo, esta questão possa ser posta assim,
com este carácter sobre os efeitos imediatos. Nesta linha as minhas respostas
serão sempre decepcionantes. É que eu não tenho actuado como um opositor a um
governo de Angola, o que cabe à oposição política, a que por enquanto, não
pertenço. Todas as minhas intervenções têm sido no sentido de que quando um rio
está envenenado a montante, ninguém pode esperar por águas saudáveis a jusante.
A minha preocupação é que Angola devia resolver pacificamente o problema de
um regime que nunca produzirá bons frutos, como governar com previsão e, por
isso, elaborar bons orçamentos; quando se vive da distribuição de avultadas
riquezas líquidas a familiares, a servidores pessoais e aos que se calam a
algum preço, alto ou baixo.
F8 – Acha estar esgotado o consulado do actual presidente? Melhor, não se
cala por não ter recebido, também dinheiro fácil do erário público, como os
outros dirigentes?
MM - Vou responder a essa questão com algum
desencanto (risos), porque não pensava que ainda houvesse alguma dúvida sobre
algo de que tantas vezes falei. Em primeiro lugar, costumo desafiar, quem quer
que seja que tenha passado pelo exercício do poder que diga que não se
aproveitou de nada, não ajudou algum parente ou amigo ou não ajudou
necessitados, muitas vezes por questão de promoção da própria imagem; e costumo
concluir que nunca me considerei santo. Mas há uma coisa que não faço: vender a
confiança, a imagem de razoável prestador de serviço público e de dignidade
possível que conquistei entre muitos angolanos (nenhum homem pode pretender a
conquista do coração de todos os outros, nem é preciso) e não só. Isso não é
nenhum julgamento contra aqueles que tenham outras opções, até porque pode ser
que não tenham tido as condições psicológicas de fugir – como eu tenho
conseguido ter até aqui – a tão desmedidas benesses, para abdicarem do
razoável. Como me dizia um amigo há dias, e numa espécie de brincadeira,
porque sabe que eu não estou alinhado nisso, “vocês do MPLA, o vosso mal é o
exagero. Não têm a noção do limite”. No tempo em que passei pela direcção do
MPLA (1985-1998) havia a noção do limite. Havia…
F8- O executivo de Eduardo dos Santos poderia evitar esta decalage?
MM - Como um governo imediatista e que não
presta contas a ninguém, no que for essencial, pode evitar “decalages”? A única
solução é a boa arte de encontrar “bodes expiatórios” e “desculpas do mau
pagador”, o que nas circunstâncias nem é difícil, num país onde se reprime e
até se mata quem reclame com alguma veemência.
F8 -
Que reflexos haverá na economia nacional, mais concretamente, na restante
máquina produtiva?
MM - Outra resposta que se espera,
provavelmente, decepcionante. Entendo muito pouco das previsões económicas. O
que sou, sem rebuços é humanista. É o que me levara para a política. Por isso
espero que não se agrave ainda mais a vida dos angolanos. Se há coisas que me
deixaram de boca aberta, dos actos do Presidente Santos, depois da domesticação
do MPLA e do fim da guerra, foi essa de entregar o Fundo Soberano de Angola à
direcção do próprio filho. Tenho perguntado a todos os que acham que eu nem
devia falar nessas coisas porque pertenço ou pertenci ao regime se isso tem alguma
parecença com o tempo do partido-único ou do tempo em que pertenci ao governo,
sem nunca me ter declarado santo. Mas agora vou esquecer todo o espanto e vou
esperar que independentemente do nepotismo do mais admirável que se pudesse
esperar, que ao menos sirva esse fundo para aliviar as consequências humanas
da crise. Terá sido criado para coisa diferente, que não seja para estas
situações?
F8 - Os produtos produzidos em Angola,
ficarão mais caros, com a subida do preço do crude?
MM - Quem me leu até aqui, pode adivinhar a
resposta.
F8 – Infelizmente não estamos no campo das adivinhas e nem todos os nossos
leitores o são, por isso, gostaria que não tivesse receio de responder. Vão ou
não os preços subir no mercado local, uma vez grande parte da indústria
funcionar com geradores e os direitos aduaneiros em Angola são uma autêntica
roubalheira?
MM – Quando fala em receio, não o entendo,
porque só o teria se eu tivesse responsabilidades governamentais ou se concordasse
com a actual direcção do partido no poder, com quem, como sabe, eu divirjo em
360 graus esticados e intocados. O que quis dizer, com toda a franqueza que me
caracteriza, é que a minha linha de intervenção é mais do tipo institucional,
na área jurídico-constitucional, onde penso residir o problema fundamental do
que na linha de previsões económico-sociais. Se um dia eu voltar ao governo,
que nunca será neste regime completamente à-moral e atrapalhado com a ideia de
acumulação de capital para parentes e servidores, saberei rodear-me de pessoal
competente nessas áreas (risos).
F8 - Que relevância política terá o parlamento, que não fiscaliza ser chamado
para esta situação de retificação?
MM -
Esta é que é, até aqui, a questão mais importante. Os problemas que vivemos
derivam fundamentalmente da morte a que o Presidente Santos, com o silêncio de
quem devia reagir minimamente contra isso, sujeitou as instituições previstas
num sistema de Estado moderno que corresponde a um território vasto e variado.
Sem falar hoje de outros aspectos como o controlo da comunicação social, como
é que um parlamento exerce a sua função positiva em qualquer assunto se não é
ouvido pela país e se há um tribunal presidencial (Tribunal Constitucional) que
lhe retira, de forma descarada, as competências, quando a Constituição não
cobre a defesa de determinados interesses pessoais supervenientes do titular da
Presidência da República?
F8 – Conhece
alguma latitude onde tenha sido tão espezinhada e recuada a visão de Montesquieu
sobre a separação de poderes. Como pode um Estado aceitar que o Parlamento não
possa fiscalizar o Executivo. Tirando a
Coreia do Norte e a China comunista conhece algum outro exemplo?
MM –
Fui dos primeiros juristas e cidadãos a levantar essa questão, apenas se tinha
anunciado a possibilidade de se organizar o Estado angolano tal como está hoje
(totalmente entregue a uma pessoa), antes da aprovação da Constituição de
2010. Bom, esta situação agora agravou-se porque vendo-se que havia uma lacuna
naquela “constituição” para proteger completamente os interesses pessoais do
actual e longevo titular da Presidência da República, o Tribunal Constitucional
(deve ler-se “tribunal presidencial eduardista”) concluiu a proclamação do
actual Presidente da República em monarca absoluto (v. acórdão 319/2013)
depois de ter proclamado o filho José Filomeno dos Santos seu príncipe herdeiro
(v. acórdão 233/2013). É um regime que pouco tem a ver com a China actual de
“um Estado e dois sistemas”, onde o Presidente é sujeito ao controlo do
partido no poder e ao princípio da alternância geracional não nepotista,
obrigatória.
F8 – O MPLA com
esta acção mostra sentido de Estado ou trata os deputados como uma espécie insignificante?
MM -
A resposta à primeira pergunta serve aqui.
F8 – Haverá
reflexos dramáticos nos organismos sociais?
MM- Serve a resposta
à pergunta 4.
F8 – Acha que se
responder como ficará a Saúde, a Educação e
outros sectores sociais, poderá ser perseguido. Teme por um assassinado, por
isso não está a vontade, mesmo estando em Lisboa?
MM –
Esta é uma questão que para quem tem acompanhado o meu percurso, só pode ser
entendida como sendo feita por um “advogado do diabo” (risos). Mesmo antes de
entrar na “idade da cinza”, em que, como dizia o velho Mendes de Carvalho, já
não há nada para queimar, sempre entendi que se tiver que morrer por defender
uma paz alicerçada num mínimo de justiça, que venha esta morte antecipada. A
morte é uma estrada por que todos, até os assassinos dos outros terão de
passar, deixando, no entanto, um legado de desumanidade e escuridão atrás de
si. Veja os raios de esperança que deixaram Sócrates, Jesus Cristo, Maathma
Gandi e o Pastor Luther King, apesar de terem sido assassinados, alguns, tão
precocemente, por defenderem o perdão, o amor e a transformação positiva?!
F8 –
Independentemente do que respondeu antes, a vida das populações vai ou não
piorar, na sua visão?
MM –
Insiste! (risos). Na verdade são questões que devem ser colocadas ao governo
que tem os recursos e as reservas. Como leigo na matéria não posso prever e
depois ser desmentido pelos factos, amanhã. O que faço é votos para que a vida
não piore mais do que já está, especialmente para as camadas mais sofridas da
população. Por vezes, dá a impressão, que é sadicamente tratada. Veja-se os
desalojamentos e demolições de casas de pobres, para propiciar a tal acumulação
primitiva do capital para uma minoria; e o mau trato às quitandeiras e jovens
vendedores de rua, sem incentivos de outras actividades fora das cidades, especialmente
de Luanda!
F8 – O que acha
pessoalmente, sobre toda esta forma de gestão da máquina do Estado?
MM -
Tudo dito, antes.
F8 - Repito,
considera estar a ser bem gerida a máquina do Estado, numa altura até que o
ex-ministro das Finanças, regressa agora a governador do BNA.
Afinal o MPLA tem ou não quadros, pois são sempre os mesmos a rodar todos
os postos e a perceberem de tudo.
MM –
Não sei como não entendeu a resposta a essa questão em devida altura. Também
repito: com um regime pessoalizado como o de Angola, não é possível uma boa
gestão da máquina do Estado de um território e complexidade tão vastas e
variadas. E como também referi à sua colega do Terra Angolana, não importa se
os quadros são novos ou velhos, porque o comando é só um e sempre o mesmo
F8 - Acredita
que o aumento do preço dos combustíveis vão conseguir equilibrar as contas do
Estado?
MM –
Como lhe disse deveriam os angolanos perguntar; para que serve afinal o
Fundo Soberano de Angola?
F8 – Qual a
receita que apresentaria, neste momento, para uma melhor gestão da coisa
pública?
MM -
A reposta já foi dada ao longo da entrevista: quem espera por águas puras a jusante
de um rio a montante envenenado só se aperceberá quando desfalecer ou lhe acontecer
o pior; como quem espera por “boa gestão da coisa pública” num regime
“pessoalizado” só colherá algumas quimeras.
Em todas as
minhas intervenções eu coloco este grande desafio: apresentemos,
efectivamente, uma lição à África e ao mundo: esqueçamos um passado inútil que já
não se recupera, perdoemo-nos e construamos, claramente, um regime que sirva,
minimamente, a todos.
Tenho conversado
sobre isso com líderes da oposição e o MPLA do Presidente dos Santos não desconhece
as minhas ideias. Acredito que um dia o bom senso despertará as consciências
dos homens da elite política da minha geração, a tempo que futuras gerações
não resolvam isso de forma inesperada. Os sinais não andam muito longe e isso
não se resolve com eleições sucessivamente armadilhadas, para a UA, a ONU e UE
verem.
F8– Qual a sua
visão, como conhecedor de uma máquina que pede sempre ao povo para pagar
impostos, mas eles continuam com tudo subvencionado, inclusive os
combustíveis?
MM –
Há uma subvenção de combustíveis que só favorece dirigentes e afins? Isso para
mim é uma novidade e repito, na minha humildade, que não domino todos os
aspectos da vida económica do país, hoje. Estando eu no governo (é preciso
lembrar que saí do governo vai fazer 19 anos, em Junho) a subvenção aos
combustíveis era geral e era entendida como necessária para aliviar a vida das
populações em situação de guerra. Uma tentativa de alterar a situação para
melhorar os aspectos macro-económicos teve de ser suspensa, devido às reacções
negativas, por iniciativa do Presidente da República.
Aproveito para
reiterar que o que está mal não é, em si, a máquina governativa mas o regime
material que dirige Angola, que em vez de corrigir o que estava mal no regime
do partido único e o que funcionou durante a guerra pós eleitoral faz o pior:
entrega todo o poder a uma pessoa a quem deixa fazer tudo o que quer.
Também, quem
inventou que governantes devem chamar-se “dirigentes”, foi infeliz. Deviam
chamar-se servidores. Por isso é que muitos se acham superiores ao resto da
sociedade e “donos da vida e da morte” dos restantes humanos.
Folha 8. Edição
1222 de 31 de Janeiro de 2015.
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