É hoje o escritor mais profícuo de Angola, apesar de publicar de dois em
dois anos. Já escreveu 20 livros, venceu o Prémio Camões. Nascido em Benguela,
foi guerrilheiro, político e um dos ‘pais’ da Educação em Angola. A experiência
tem-lhe inspirado a escrita que o obriga à rotina. Mas confessa detestar
reuniões e fama. Não entende o consumismo da nova geração e revela que se
esquece que é branco.
Tem mais de 20
obras publicadas, o que explica a cadência?
Não é assim tão
grande, mais ou menos de dois em dois anos...
O ‘Tímido e a
mulheres’ foi escrito em seis meses…
Sim, esse foi
relativamente rápido. Eu acabo um livro e ele sai, ainda demora um bom bocado e
surge-me a vontade de escrever ou tenho uma ideia e escrevo. Depende dos
livros, há uns que demoram mais, sobretudo os que implicam pesquisa histórica.
Podem ser uns seis meses depois há a revisão, a editora também demora uns meses
a tê-lo pronto, o que dá mais ou menos os tais dois anos.
Tem algum favorito?
Nem por isso. Há
períodos em que o que gosto mais é aquele, mas depois acontece gostar de outro.
Passou a fase em que tenha tido um mais importante do que outros.
E um que não
gostasse?
Já retirei. Foi
uma peça de teatro escrita há muitos anos e que retirei do cardápio.
O ‘Lueji’ é
considerado História de Angola. É assim que o vê?
Não, o Lueji não
é História. É baseado num mito do qual encontrei pelo menos seis versões,
conforme as etnias que o contavam e resolvi escrever a minha história. Não há elementos
conclusivos que indiquem que as coisas se tenham passado dessa maneira. De
todas as versões, há uma geral que conta que havia uma chefe lunda que casou
com um príncipe luba a quem o pai conferiu o poder dando-lhe o ‘Lucano’ contra
a vontade dos irmãos. É apresentado quase como um demónio, que é um personagem
de quem gostei. É como na bíblia, um Lúcifer, um anjo que rouba a luz a Deus e
é castigado tornando-se depois um diabo. Isto vem na tradição oral dos lunda e
dos tchokwe.
Nos romances
históricos, sente dificuldade no acesso à informação?
O ‘Lueji’ foi
difícil, o ‘A Sul o Sombreiro’ foi relativamente fácil na medida que já tinha
feito a pesquisa para ‘A Gloriosa Família’ que é do mesmo período. Já sabia
onde ir buscar os elementos. A história é conhecida, pelo menos, a da fundação
de Benguela, do Manuel Cerveira Pereira e do que se passou em Luanda com ele
como governador. A história é escrita pelos inimigos dele, de maneira que fui
buscar outros elementos históricos, alguns cronistas, padres, e muita coisa que
já tinha encontrado. Foi preciso reler, sobretudo as partes que me podiam dar
ideias. Agora livros, como ‘O Tímido e as Mulheres’, não precisam de pesquisa,
estão aí nas ruas, basta ir a um mercado ou outro para se começar a imaginar as
cenas e assim é mais fácil.
Quais são as
suas maiores referências na literatura angolana?
Dos mais velhos,
o Luandino Vieira é incontornável. Do princípio do século XX, Assis Júnior,
extremamente importante, e Castro Soromenho são referências dos tempos em que
me fui formando como escritor.
E da
actualidade?
Há vários…
Roderick Nehone. José Luís Mendonça lançou um romance muito interessante, ‘O
Reino das Casuarinas’. Há mais conhecidos, Agualusa, Ondjaki, Manuel dos Santos
que continua a publicar, Manuel Rui Monteiro são estes fundamentalmente os
‘prosadores’. Haverá um ou outro poeta, mas sou da outra banda, da banda da
prosa, não entro na poesia.
Como é a sua
rotina de escrita?
Depende. Agora
não há nenhuma porque não estou a escrever, estou a fazer muitas outras coisas.
Mas depois entra um momento em que tenho uma história, estou com apetite e crio
as condições. Não faço mais nada, ninguém me vê em sítios públicos onde possa
encontrar jornalistas ou fotógrafos, começo a recusar saídas do país, convites.
Normalmente, escrevo de manhã. Se é um livro que implica trabalho, além da
escrita, como leitura ou pesquisa, à tarde faço isso, de manhã é para escrever.
À tarde distraio-me, faço outra coisa. Ao fim do dia, volto a pegar no livro,
só para fazer uma revisãozinha e dormir tranquilo, de manhã pego outra vez
nele.
Disse que gostou
da personagem ‘Tshinguri’. Pode cansar-se de um personagem, ou mesmo não gostar
dele?
Quando não gosto
de um personagem, ou o mudo e dou-lhe uma bassula, faço-o ter uma reviravolta
ou desaparecer de cena. Normalmente, mesmo os mais revoltantes são
fundamentais. Não gosto dele, mas como ele deve ser assim trato-o o melhor
possível. Ele é mau, realço as más qualidades, mas mantenho a mesma preocupação
estética.
Quando começa um
livro já sabe o fim?
Não, excepto nos
livros baseados na História. Mas, por exemplo, falando do ‘Lueji’, sabia que
ela iria ser a mãe do primeiro imperador, isso vem na tradição, tinha de ser
assim. Agora até quase à última cena, não sabia bem como é que ia ser. Decidi
que a versão em que ela é estéril era bem mais interessante, leva a história
para outro caminho. A maior parte das vezes não sei como acabam. Escrevo mesmo
para saber como vai acabar. Há um momento em que o livro diz “estou cansado de
ti, despacha isto”. O livro é que se cansa de mim.
Como lida com a
fama, com os fãs?
São óptimos. É
gente simpática, mesmo quando já se está um pouco cansado de perguntas ou de
pedidos para ‘selfies’ e afins. São ossos do ofício. É com todo o carinho que
querem tirar uma fotografia comigo. Agora, a fama em si é horrível. Ainda bem
que tenho pouca, não suportaria ser um Brad Pitt ou um Cristiano Ronaldo. Que
horror!
Os seus pais já
nasceram cá, sente-se mais branco ou mais negro?
Sou branco, com
misturas claro, mas socialmente as pessoas consideram-me branco. A pessoa é o
que é. Aqui sou branco, noutros sítios, às vezes, olham para mim a tentar
perceber as misturas, se sou indiano ou talvez tenha mistura de cigano. Mas não
me identifico com um grupo racial qualquer. Sou angolano e identifico-me com
isso. Aliás, estou sempre a esquecer a minha cor. Às vezes, arrisco um bocado
em certos sítios e dou bafos, e depois olho para o braço e penso que quem me
ouve deve estar a pensar que sou um estrangeiro.
Aqui o racismo
já foi ultrapassado?
Não. Mas não é
um problema central em Angola. Tem até sido tratado com ponderação pelas
instituições e, por isso, não há grandes problemas, embora sinta que há uma
certa estratificação social que é muitas vezes acompanhada por uma
estratificação racial. Na população, há o perigo de se confundir o mais claro
com o mais rico, o que nem sempre é verdade. Haverá essa tendência. Realmente,
não há muitas pessoas claras que sejam muito pobres. Lembro-me que depois da
independência havia, mas hoje é mais raro. No entanto, uma parte da população
pode achar isso mesmo. Antigamente, era muito raro alguém duvidar da minha
nacionalidade angolana, hoje duvidam. Ainda por cima, o meu bilhete é daqueles
primeiros amarelos, vitalício, e muitas pessoas não conhecem e depois duvidam.
Foi
guerrilheiro. Este é o país por que lutou?
Nós lutámos pela
independência. E conseguimos. Portanto, 50 por cento está lá. Agora nós, pelo
menos um grupo significativo de guerrilheiros, particularmente intelectuais que
tinham influência política no movimento, queriamos ajudar a criar um país
justo, muito mais justo do que era a sociedade colonial. E mais justo do que
alguns países africanos que já tinham as suas independências que conhecíamos e
que mantinham as desigualdades, as injustiças. E é aí que falhámos. Criámos
algumas bases, mas esse sonho ainda não foi realizado. Esperemos que as
próximas gerações o consigam fazer.
O que é que é
preciso para realizar esse sonho?
Fundamentalmente,
maior igualdade social. Temos agora como ‘slogan’ mundial o ‘combate à pobreza’
e isso tem de ser feito, tem de se provar por A mais B que se conseguiu. É
triste pensar que a mortalidade infantil é elevada, embora não seja tão elevada
como dizem algumas ONG. Não acredito que estamos entre os 10 países do mundo
com a mortalidade mais alta, isso podia ser há 10 anos. Durante muito tempo, a
ONU, PNUD e o FMI usaram, nas estatísticas, dados de 2002. Só há dois anos
começaram a introduzir dados actualizados. É por isso que sou muito desconfiado
com essas estatísticas. Quando tínhamos 12 milhões de habitantes, dizia-se que
cada um de nós tinha direito a uma mina. Se fosse uma mina de ouro ou diamantes
seria óptimo. Agora uma mina terrestre… Tendo sido militar, é difícil
acreditar. É só fazer contas. 10 minas cobrem um espaço enorme, era capaz de
não haver espaço suficiente para milhões e milhões. Está a desminar-se, e ainda
falta, mas não se vai chegar à quarta parte desse número, se calhar nem à
décima.
Como era fazer
política no seu tempo?
Ainda sou do bom
tempo em que fazíamos política acreditando no que estávamos a fazer. Uma grande
parte dos políticos de hoje faz política pela política. Ainda por cima temos
esse hábito terrível das reuniões que duram muito tempo. Sempre tive horror a
reuniões e hoje sou um homem feliz porque estou livre disso, só tenho as que
quero, mas antes era complicado. Não havia os meios de comunicação que há, era
preciso andar muito a pé ou em carros muito incómodos, más estradas (a pessoa
ficava com a coluna virada do avesso por causa dessas coisas), mas era
gratificante. Estávamos a tentar fazer o que achávamos que devia ser feito
(talvez não o que podíamos, mas o que devia ser feito).
O 27 de Maio…
Esse assunto já
passou do tempo e não falo sobre ele porque já falei. E porque é que devo ser
sempre eu a falar? Tem muitas pessoas a quem se perguntar sobre isso…
Como antigo vice
da educação, como professor, estudante, portanto um conhecedor, o que é que
está bem e mal na educação?
Já não dou aulas
há seis anos e quando dava era na arquitectura, um pouco à parte do que se
passava no resto do ensino. Não tenho por isso uma opinião muito abalizada. Sei
que se fez a reforma, que demorou, devia ter sido feita há muito mais tempo.
Durante muito tempo, tivemos um sistema de ensino que foi a minha geração que
implantou. Fiz parte dessa equipa que inventou esse sistema que teve o mérito
de dar cabo da escola colonial e substitui-la por uma escola nacional,
inventada por nós e da nossa responsabilidade. Mas esse sistema era provisório
e deveria ser aperfeiçoado depois de uns anos e isso não aconteceu. Lá para o
fim dos anos 1980 já se devia ter começado a mudar. Nessa altura o sistema já
mostrava muitas debilidades.
E está feita?
Arrastou-se
muito a reforma, demorou muito tempo a ser implementada, mas está feita, é
capaz é de ser cedo para se ver os resultados. Houve uma discussão pelo facto
do mesmo professor dar aulas em diferentes classes, mas isso já era assim. Um
professor acompanhava um aluno da 1.ª à 4.ª classe, depois alargou-se isso para
a 6.ª e aí começou a criar-se alguma confusão. Na 6.ª classe há um leque de
disciplinas e conhecimentos muito largos para um só professor. Esta discussão
ainda aí está. Tanto quanto ao sistema em si, que é parecido ao de outros
países, e à qualidade, o nível está extremamente baixo. É verdade que até há
algum tempo, não poderia ser de outra forma porque o sistema cresceu
enormemente e a qualidade não poderia aumentar ao mesmo ritmo. Aumentar foi uma
opção e foi a correcta. Pôr toda a gente na escola e criar escolas por todo o
lado e formar professores à pressão. É claro que os professores podem não ficar
bem formados. O que há a fazer agora é lutar pela qualidade. Devem manter-se
professores e devem continuar a estudar, isto fazia-se desde a independência,
era o chamado ‘programa de superação’. Naquele tempo, em que era tudo com o
papel, os professores andavam grandes distâncias. Tinham formação enquanto
davam aulas, passavam rios com livros à cabeça, mas fazia-se. Hoje há meios e
plataformas espectaculares de educação como a internet que ajudam o professor a
dar aulas correctamente, a chegar ao aluno e ao mesmo tempo a continuar a
estudar para se superar, sem sequer sair do sítio. É claro, é preciso dinheiro
e aí tem de haver investimento do Estado. O investimento número um deve ser
sempre na educação e cada vez mais. O que temos agora não chega. Tem de se
fazer um esforço para gastar mais na educação que tem de ter mais meios.
Identifica-se
mais com os professores, por exemplo, com os grevistas, ou com a gestão do ensino?
Identifico-me
sempre mais com grevistas, quaisquer que eles sejam. Quem arrisca fazer uma
greve é porque tem razões profundas. Podemos discutir se essas razões podem ser
realistas num dado momento ou não. O Estado tem de ter essa compreensão para
haver discussão. Mas é claro que os professores têm de ser dignificados ao
máximo, sobretudo os do ensino público para não dar espaço a que o ensino
privado seja a referência.
Como compara a
juventude da sua geração com a juventude dos nossos dias?
Há dois tipos,
falando daqueles que já estudaram alguma coisa, porque os outros, coitados,
lutam pela vida sofrendo muito. Nas que já têm alguma formação, há os que
querem trabalhar que têm interesse em fazer coisas positivas e têm consciência
do país, das dificuldades e das necessidades. E há uma parte que está
absolutamente alienada ao deus das coisas fúteis (que se ainda não existe é
preciso criá-lo). Estes lutam pelo último Iphone, ficam naquelas filas
intermináveis para ser os primeiros a comprar. Para mim, que nunca lutei por
uma camisa mais bonita, é uma coisa estranhíssima. Há, de facto, uma parte
desta geração que, talvez por culpa dos pais, ou porque teve muitas facilidades
e não lutou pelo que tem, é muito alienada, só pensa em diversão e, muitas
vezes, o que faz nem é diversão, porque acaba na droga ou algo do género. O que
é triste.
A juventude está
preparada para assumir o país?
Alguma parte
está. Aliás, quem já está em muitos casos a assumir o país, já não é a minha
geração, há muitos jovens em cargos de direcção. Alguns bem e outros cometendo
alguns erros, o que também é normal.
Que conselhos é
que dá aos jovens?
Ponto número um
é ler. Não se convençam que a internet substitui os livros. Também se pode ler
com um ‘tablet’. Não estou desactualizado e leio muitos livros através desses
instrumentos. O futuro faz-se com pessoas cultas e isso cria-se a partir dos
livros. Precisam saber um pouco do passado, porque a cultura faz-se também do
passado. E é importante pensarem que a realização pessoal é importante, mas que
se os outros não se realizarem ninguém é muito feliz. Realizar-se sozinho não
me parece ser o melhor caminho.
NG
ANGOLA24HORAS
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