Por toda a capital angolana, Luanda,
cartazes estrategicamente posicionados anunciam um país que é alegremente
conduzido ao progresso pelo Governo. «Construindo uma Angola próspera e
solidária» é o presunçoso lema dos anúncios que celebram os feitos do Governo
em todas as áreas da vida. Um dos cartazes festeja “mais energia eléctrica,
mais desenvolvimento”, com uma foto da barragem
do Gove, no Huambo, pese embora as recorrentes falhas de energia.
Rafael Marques de Morais
Maka Angola
Este gigantesco exercício de propaganda
fora de um período eleitoral só tem precedentes no início da década de 1970,
quando as autoridades coloniais portuguesas tentaram desesperadamente vender a
ideia de que o seu domínio fazia as pessoas muito felizes e a independência
podia destruir todos os seus grandes feitos.
Contudo, esta propaganda atinge o auge
numa altura em que a diminuição constante do preço do petróleo nos mercados
internacionais pode ser uma boa notícia para o povo angolano e um mau presságio
para os seus dirigentes. Como medida de contenção, em Dezembro passado, o
executivo do presidente José Eduardo dos Santos decretou um aumento de 20 por
cento dos preços de venda de combustíveis, para mal dos pecados do povo. Foi o
segundo aumento decretado no espaço de três meses. Mais de 80 por cento dos
derivados do petróleo consumidos em Angola são importados, devido à falta de
capacidade de processamento em Angola, e as autoridades continuam a gastar até
3.5 biliões de dólares americanos por ano a subsidiá-los. O Fundo Monetário
Internacional (FMI), em troca do seu apoio ao executivo angolano, sugeriu um
corte radical desses subsídios. As autoridades assim fizeram, pelo que podem
sempre pôr as culpas pela deterioração da situação económica no Ocidente,
através do FMI.
Assim, enquanto segundo maior produtor
de petróleo de África, e um dos principais exportadores do mundo, é possível
que Angola se tenha tornado o único produtor que aumentou exponencialmente os
preços nacionais dos combustíveis, numa altura em que o preço do petróleo cai a
pique nos mercados globais.
Entre a propaganda e a realidade, este
artigo explora o impacto dos preços do petróleo e dos combustíveis no domínio
de 35 anos do presidente e na sociedade em geral. O orçamento deste ano ilustra
de modo crucial como as autoridades se dispõem a lidar com a crise económica.
Corrupção, propaganda e repressão serão, com efeito, as principais medidas
tomadas para gerir a situação.
Boas Notícias, Más Notícias
Sérgio Piçarra, o famoso cartoonista
angolano, resume a actual situação difícil do regime num cartoon de
22 de Janeiro: O governo é retratado como um piloto suicida ao comando de um avião
chamado «economia virtual». Voa direito a uma tempestade formada por quatro
nuvens e barreiras ameaçadoras: o preço do petróleo, crises sociais e
económicas, má governação e corrupção. A agricultura e a indústria, presentes
na torre de controlo, chamam: «Alô… alô… Economia virtual? Aqui economia real
chamando…Está a ouvir?! Câmbio...» Não há resposta, enquanto o piloto cerra os
dentes, aparentemente numa tentativa de impedir que o avião embata com as
nuvens à sua frente.
A queda do preço do petróleo podia ser
uma boa notícia, porque, assim, o Governo do presidente José Eduardo dos Santos
teria de enfrentar a corrupção institucional, o esbanjamento e a má
administração de fundos, assim como a diversificação da economia. Qualquer
outra via conduziria à autodestruição do regime.
Porquê?
Porque os governantes de Angola utilizaram
consistentemente as receitas do petróleo e da sua distribuição como meio de se
manterem no poder e de aumentarem a sua riqueza pessoal através do saque
desenfreado.
Em Outubro passado, a aprovou o
Orçamento Geral de Estado (OGE) de 2015, com o preço de referência do petróleo
a 81 dólares por barril. Mais de 95 por cento das receitas de exportações de
Angola derivam do petróleo. O seu declínio para menos de 50 dólares encolheu
significativamente as receitas dos 7.2 trilhões de kwanzas (72.5 biliões de
dólares) previstos no orçamento inicial. Devido à queda dos preços, o governo
calculou uma perda de 14 biliões de dólares americanos em receitas de petróleo,
destinadas a sustentarem o orçamento inicial.
Do total inicial, o governo espera obter
30.6 biliões de dólares americanos em empréstimos, mais de metade dos quais no
mercado local. Dado que os bancos comerciais em Angola estão demasiado
dependentes dos depósitos estatais e das empresas privadas que fazem negócios
com o Estado, isto suscita duas preocupações principais: primeira, as fortunas
ilícitas de altos funcionários públicos poderão ser a fonte de financiamento,
em esquemas de lavagem de dinheiro através da compra de obrigações e títulos do
tesouro; e, segunda, esta porção do orçamento pode ser fictícia, para
simplesmente sustentar o PIB, oferecendo uma expectativa promissora na
economia. Por exemplo, o governo estima que a dívida pública atinja, este ano,
o equivalente a 47 biliões de dólares, equivalente a 35.5 porcento do PIB.
A 23 de Janeiro, a equipa económica de
José Eduardo dos Santos definiu os “termos de referência” para rever o
orçamento, com o preço do petróleo já avaliado em 40 dólares por barril. A
pergunta a fazer é como é que as autoridades vão baixar as despesas previstas
em mais de 45 biliões de dólares. Um terço desse valor, 15 biliões,
destinar-se-ia, só por si, a salários do sector público.
Porém, na sua clássica abordagem
legalista, o presidente José Eduardo dos Santos precaveu-se, não se dê o caso
de não se achar dinheiro para cobrir as despesas. A Lei do OGE de 2015 dá
ao presidente plenos poderes de “cativar até 100% das dotações orçamentais de
determinados projectos do Programa de Investimentos Públicos e das despesas de
Apoio ao Desenvolvimento”. Destinou-se um total de 11.1 biliões de dólares para
os Programas de Investimento Públicos.
Contudo, o presidente já demonstrou que
não enfrentará a corrupção institucional, mas antes se apoiará nela. A sua
recente nomeação de um antigo ministro das Finanças caído em desgraça, José
Pedro de Morais, como novo governador do Banco Central de Angola, surpreendeu
até os seus apoiantes mais fervorosos. O mesmo aconteceu no final de 2013,
quando o presidente nomeou outro antigo ministro caído em desgraça, André
Brandão, como seu secretário para a Contratação Pública.
No preâmbulo do orçamento deste ano, há
uma crítica velada da resistência do presidente à transparência em concursos
públicos de contratos. Este ano, o OGE exorta à massificação de concursos
públicos, assim como o escrupuloso cumprimento da Lei da Contratação Pública.
Isto é autocrítica hipócrita, para mostrar que o presidente melhora a
transparência. Todavia, não há nenhuma explicação sensata sobre o que faz o
secretário para a Contratação Pública, além de ser mais uma engrenagem num
sistema concebido para infringir a lei.
Mas o elemento crucial continua a ser o
tamanho do Governo central, e o facto de o presidente ter um gabinete de 33
ministros e 55 secretários de Estado, o que representa um dos maiores governos
do mundo. Além disso, José Eduardo dos Santos tem o seu mais influente
gabinete-sombra, dentro da presidência, dirigido por dois ministros de Estado,
um ministro e 12 secretários de Estado, entre os quais o Sr. Brandão.
Em cálculos conservadores, só em
salários e subsídios formais, este governo central custa aos contribuintes mais
de 30 milhões de dólares por ano. Isto não inclui os custos com infra-estruturas
e as despesas gerais para que todos estes indivíduos cumpram as suas funções.
Nos últimos quatro anos, o presidente
evitou regular a Lei sobre o Regime Jurídico e o Estatuto Remuneratório dos
Titulares da Função Executiva do Estado (Lei 11/10). Porquê? “Permite ao
presidente interpretar e dispor dela a seu bel-prazer, uma vez que só o
regulamento estabelece os limites da operacionalização da lei”, explica um
advogado que nos fala sob condição de anonimato.
“Assim, os ministros podem ter mais de um
carro oficial e podem autorizar mais subsídios e contrapartidas para si mesmos,
uma vez que não há limites”, acrescenta.
Segundo o mesmo advogado, “é por isso
que é difícil combater a corrupção. O presidente não regula as leis que podiam
ajudar a estancar a corrupção. As leis servem apenas para dar uma aparência de
estado de direito, mas ele deixa-as propositadamente indefinidas para proteger
o statu quo”.
É extremamente difícil calcular o custo
anual total dos privilegiados com assento no Governo, dadas as liberdades que
os ministros têm com os orçamentos e os bens à sua disposição.
No que toca à diversificação da
economia, não acontecerá sob o mandato do presidente José Eduardo dos Santos. E
aqui está porquê. A economia, seja no sector público, seja no sector privado,
continua desmesuradamente centralizada nas mãos de uns poucos decisores. Estes,
por sua vez, também são os principais homens de negócios do país, aqueles que
assinam contratos para pilhar o Estado.
A agricultura é frequentemente vista
como o sector que mais poderá contribuir para a diversificação da economia.
Durante um ano, este autor tem inventariado a apropriação de terras por dezenas
de dirigentes, nas áreas mais férteis do país, assim como o acesso a centenas
de milhões de dólares de empréstimos estatais para o fomento da agricultura.
Muito desse dinheiro acaba em contas bancárias no estrangeiro ou serve para
pagar estilos de vida sumptuosos. Porém, centenas de comunidades rurais têm
estado a ser expropriadas das terras que utilizam há gerações para agricultura
de subsistência, sem que se lhes ofereça nada em troca.
Além disso, a corrupção
institucionalizada corroeu quaisquer esforços de diversificação da economia e
de estimulação do crescimento do emprego e de empresas sustentáveis numa economia
de mercado. Vezes sem conta, os dirigentes dão contratos a empresas
estrangeiras que estabelecem sociedades mistas com empresas privadas suas ou a
empresas em que eles próprios têm interesses adquiridos.
Actualmente, a corrupção é o principal
factor de unidade e lealdade no âmago dos 40 anos de poder do MPLA, tal como é
o cerne da supressão de direitos civis e políticos dos cidadãos.
O presidente, contudo, é habilidoso. Tem
financiado dois grupos de especialistas para que aconselhem duas comissões económicas
sob sua tutela, num montante de 3 milhões de dólares por ano. Uma é a Comissão
Económica, e a outra, a Comissão para a Economia Real. Vá-se lá entender. E,
como se isso não bastasse para nos fazer rir, este ano Dos Santos também anda a
pagar 11.2 milhões de dólares do orçamento da presidência à Expo 2012 de Yeosu,
que teve lugar na Coreia do Sul há três anos. Em 2012, José Eduardo dos Santos
destinou 9.1 milhões de dólares para a Expo 2012 de Yeosu. Um ano depois, em
2013, alocou mais 5.7 milhões de dólares à mesma feira mundial, que já tinha
acontecido. Em 2014, disse ter gastado mais 6 milhões de dólares para que
Angola estivesse representada na feira. No total, a presidência já se serviu da
feira para justificar mais de 30 milhões de dólares de despesas. Não há nenhuma
informação oficial sobre a obsessão presidencial com a Expo 2012 nem sobre o
que aconteceu realmente ao dinheiro. Existem muitos mais exemplos parecidos,
mas este basta para se perceber o que se passa.
Além do resto, o orçamento deste ano tem
3.85 biliões de dólares destinados a “outros serviços”, não especificados. O
Observatório Político e Social de Angola (OPSA) calcula que esse dinheiro
corresponda a 5 por cento do orçamento total do Estado. “Como é evidente, este
facto não contribui para a transparência e credibilidade do OGE”, avisa a OPSA.
É um mau presságio para o regime. Sem
guerra, e sem o dinheiro do petróleo a fluir como um rio, como é que o regime
pode disfarçar o aparente alheamento do presidente da realidade?
Entra a Propaganda
A propaganda já foi utilizada tanto para
promover as acções do presidente e do MPLA, como enquanto ferramenta
psicológica para neutralizar a crítica social.
A campanha propagandística referida
atrás é deveras impressionante. Por exemplo, uma fotografia da recém-construída
Assembleia Nacional, a um custo de mais de 200 milhões de dólares, é legendada
com “consolidar a democracia”. O parlamento simbólico é reclassificado como
força democrática. Um silo de cereais construído no município de Cubal, na
província costeira de Benguela, é festejado como parte de “novos pólos
industriais”. Depois, um favorito, a Centralidade do Kilamba, construída por
chineses, em Luanda, é retratada como estando “a resolver os problemas do
povo”. Mas a mais fascinante é a fotografia de uma turbina, a sul de Luanda,
que mostra ser alimentada por dois depósitos de gasóleo, um com 2500 metros
cúbicos e o outro com 250 metros cúbicos. A legenda é impagável: “mais
electricidade para todos”. A turbina não produz energia senão para um bairro,
consome combustível em abundância e é altamente poluente. Mas a propaganda quer
fazer as pessoas esquecer que o governo diz ter gastado biliões de dólares em
duas barragens, Kapanda e Laúca, para dar energia à capital. Dadas as falhas
eléctricas endémicas em Luanda, esses investimentos não lograram cumprir o que
prometiam.
Neste ano de crise, o presidente
destinou 33.4 milhões de dólares americanos para o seu gabinete de propaganda,
conhecido como GRECIMA.
Mas nem mesmo isto basta para convencer
as pessoas de que o que o governo está a fazer é um presente pessoal do
presidente para o povo, ao invés de um serviço que qualquer governo está
obrigado a prestar.
Protestos, Repressão e Conspiração
Actualmente, o poder do presidente José
Eduardo dos Santos está a torna-se rapidamente no adversário comum. Há menos
opções para justificar a necessidade de, após 35 anos de gestão incompetente e
do esbanjamento de biliões de dólares de receitas provenientes do petróleo, ele
permanecer no poder.
Alguns sectores do grupo dirigente,
preocupados com a autopreservação, começam a chegar à conclusão de que o
presidente, com a sua gestão errática do país, poderá ter deixado de ser o
guardião do statu quo. É actualmente possível ouvir generais e altos membros do
regime desabafarem que chegou a altura de o presidente abandonar o poder. Os
cofres do Estado poderão em breve deixar de ter liquidez para manter a
corrupção institucional como principal incentivo ao apoio político do
presidente. Isto poderá conduzir ao colapso da sua rede de clientelismo.
Hoje em dia, o presidente é incapaz de
tolerar os mais pequenos protestos contra o seu poder, muitas vezes feitos por
uma mão-cheia de jovens. Os serviços de inteligência militar tomaram o comando
de operações contra esses dissidentes. Mas o descontentamento entre militares,
agentes da polícia e das forças de segurança está a produzir conversas sobre
conspirações, reais ou imaginadas, contra o presidente. Há sérias preocupações
de que, se o governo for incapaz de honrar a tempo os pagamentos dos salários
mensais dos militares e polícias, a estabilidade do regime poderá estar em
perigo.
Em todo o espectro político e social, a
ideia de que o presidente e o que ele representa têm de largar o poder começa a
tornar-se corrente. Para que isto seja uma boa notícia para o povo, tem de se
forjar uma nova mentalidade social e política. Como construir um Estado, cujo
governo sirva e respeite a soberania e os direitos do povo, tem de ser o
problema central a resolver.
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