A queda drástica do preço do petróleo está a deixar Angola em graves
dificuldades financeiras, pondo em risco os cerca de 200 mil portugueses que lá
vivem e milhares de empresas nacionais que exportam para aquele país africano.
As dificuldades não começaram agora, mas desta vez poucos duvidam de que
estamos a assistir ao fim do El Dorado angolano.
Angola já não é
o que era - e pelo caminho Tiago Sousa passou de imprescindível a indesejado.
Ao fim de seis anos a trabalhar nos casinos de Angola, o profissional de
marketing, de 39 anos, não aguentou mais as dificuldades crescentes na
renovação dos vistos, os aumentos salariais a transitarem de generosos para
irrisórios, a imposição de regras cada vez mais restritas e avulsas na empresa,
as notícias sobre portugueses assassinados e a rarefação do dólar, trocado por
um kwanza praticamente inútil entre imigrantes.
"O aumento
de mão de obra qualificada barata acabou por se refletir nas condições de
trabalho dos portugueses que já estavam em Angola", diz. "Era normal
termos aumentos anuais consideráveis, que se foram tornando marginais, nos
últimos anos. Também os tempos de espera dos vistos aumentaram, e nos últimos
dois anos deixou de ser possível renová-los sem sair do território. Outra
alteração que motivou a minha saída foi a 'desdolarização' levada a cabo pelo
executivo angolano, sendo que os expatriados passaram a receber em
kwanzas." A tudo isto, continua, "junta-se o problema de falta de
divisas no mercado angolano, inviabilizando a transferência de valores
provenientes de salários ou negócios."
Uma situação já
de si hostil poderá tornar-se catastrófica para os imigrantes portugueses. O
petróleo, que caiu drasticamente nos últimos meses para os 45 dólares o barril,
é a base da economia angolana: representa 43% do PIB, 98% das exportações e 72%
das receitas do Estado. O Presidente angolano ordenou, entretanto, que se
fizesse um orçamento retificativo a partir de um preço por barril de 40
dólares, em vez dos 81 dólares orçamentados para 2015, o que implica cortes nas
despesas de 14 mil milhões de dólares (12,3 milhões de euros). Outra medida em
cima da mesa é a introdução de quotas às importações, limitando a entrada de
produtos básicos cuja produção nacional cubra 60% das necessidades, como
cerveja e produtos hortícolas, o que deixará em maus lençóis muitas das nove
mil empresas portuguesas que exportam para Angola.
Por tudo isto,
Tiago Sousa assegura que não podia estar mais satisfeito por ter saído, em
novembro. "Amigos meus que continuam em Angola estão preocupados com as
recentes notícias sobre uma política de austeridade no país, com o aumento do
preço da gasolina (quando saí, o preço de um litro estava a 60 kwanzas, e ainda
esta semana subirá para 120 kwanzas) e com as repercussões que tudo isso possa
ter na população em geral. Prevê-se desemprego e convulsões sociais." Que
os portugueses - imigrantes e não só - serão dolorosamente afetados, ninguém
duvida. Mas quão profunda será a ferida?
O peso da
construção portuguesa
O setor mais
dependente de Angola, e portanto o mais vulnerável à recessão, é a construção
civil. Depois da hecatombe provocada pela crise em Portugal, com milhares de
falências e de trabalhadores no desemprego, os construtores encontraram no país
de José Eduardo dos Santos o paraíso das obras. Angola é o principal mercado
externo, com um peso de 38% do total da internacionalização e um volume de
negócios de dois mil milhões de euros.
São das grandes
empresas portuguesas as obras emblemáticas da capital: a requalificação da baía
de Luanda (Mota-Engil e Soares da Costa) e a nova sede da Assembleia Nacional
(Teixeira Duarte) são dois exemplos. A Mota-Engil África, subsidiária da
Mota-Engil, que representa 47% do volume de negócios do grupo, estreou-se recentemente
em bolsa e já está a perder. Metade da empresa chegou a desaparecer, com uma
queda acumulada de 50%, em dezembro, devido ao preço de petróleo, que põe em
causa novas empreitadas em Angola.
Mas as grandes
já estão em muitos outros mercados, embora Angola seja o principal. O problema
são as PME. "Atualmente, as empresas portuguesas estão em atividade com
projetos que já estavam iniciados. Daqui para a frente é que poderá não haver
reposição de trabalhos e alguns projetos poderão ser adiados ou suspensos. Tudo
vai depender da longevidade deste ciclo do petróleo", refere Ricardo
Pedrosa Gomes, presidente da AECOPS, associação do setor.
Este responsável
descreve um tecido empresarial com muitas empresas portuguesas de média
dimensão que, além de serem subcontratadas pelas grandes, têm também as suas
obras mais nas províncias. As que são fabricantes (de caixilharia, tintas,
argamassa ou tijolos, por exemplo) têm mais facilidade em adaptar-se às
condições do mercado. "As outras podem ser mais prejudicadas e afetadas
pelo desemprego. Ou então poderão ser levadas pelas grandes para outras
paragens", refere.
Quanto aos
trabalhadores... "Os entraves à contratação de portugueses para trabalhar
em Angola não são de agora. A vaga de emigração estancou, até porque sai mais
barato contratar angolanos. E estes estão agora mais qualificados. Aliás, é
prática das empresas portuguesas terem centros de formação profissional para os
locais", conclui.
Outros tempos,
outros salários
Com estas
mudanças, os ordenados, que podiam atingir os cinco dígitos, caíram para
valores mundanos, tendo em conta o altíssimo custo de vida em Luanda. No início
da vaga da imigração, um engenheiro auferia seis a dez mil euros por mês; nos
últimos anos, vai para lá por pouco mais de 2500. Muitos dos que hoje se mudam
para Angola já não vão à procura de enriquecer, mas apenas de alternativas para
pagarem as contas em Portugal.
O
recém-regressado Manuel Barros (nome fictício, a seu pedido, como outros neste
texto, por a empresa em que trabalha continuar ligada a Angola) confirma o
tombo dos salários. "Os portugueses que chegaram até 2010, 2011, ainda
conseguiram valores altos. Quem entrou depois disso, ficou a ganhar menos de
metade do que quem lá estava." O engenheiro civil, que viveu cinco anos em
Angola, começou a pensar seriamente em abandonar o país no final do primeiro
semestre de 2014. "Antes da queda do petróleo, já havia pagamentos em
fortíssimo atraso na construção."
O problema,
explica, é o setor assentar na edificação em Luanda, "onde a oferta já
está a superar a capacidade de aquisição" - o fantasma da bolha
imobiliária começa a amedrontar quem vive do cimento. "Não há classe
média, ou pelo menos classe média que consiga comprar aqueles apartamentos.
Muita coisa está por comprar, ou foi comprada para arrendar, mas ninguém
arrenda."
A bolha
imobiliária é justamente um dos receios para o pior cenário possível. Se
rebentar, se não houver dinheiro para comprar os empreendimentos, os promotores
não têm retorno do investimento, podem entrar em incumprimento de crédito e os
bancos serão arrastados na avalancha. Quais bancos? Os angolanos, mas
provavelmente também os portugueses que lá se encontram: Caixa Geral de
Depósitos, BPI, Millennium...
O setor bancário
é, aliás, onde os sinais de uma economia sob pressão são mais fortes. "Não
conseguimos tirar dinheiro de Angola", diz Cristóvão Martins,
administrador de uma empresa de consultoria informática. "Envio pessoas
para lá, mas depois não consigo que eles transfiram dinheiro para eu lhes
pagar. O BNA [Banco Nacional de Angola] terá dado indicações para não deixarem
sair dólares. Temos de justificar as transferências através de faturas. E mesmo
com autorização do BNA, se o banco não tem dólares nem euros, não pode
pagar." Esse é o busílis: com a queda do preço do petróleo para menos de
metade, entram agora muito menos divisas fortes no país. Por causa disso, as
autoridades locais impõem tantas restrições ao uso de moeda estrangeira.
Mas da
necessidade nasce a oportunidade. Apesar do vendaval económico que a queda do
preço do petróleo está a provocar, os analistas veem aqui uma oportunidade para
que Angola diversifique a sua economia. Além do petróleo, os diamantes têm um
peso considerável, mas também a agricultura tem vindo a crescer, representando
já 12% do PIB. Por outro lado, esta aposta de Angola na produção nacional é
mais uma má notícia para Portugal.
Mercadorias
bloqueadas
O setor
alimentar será precisamente dos mais afetados com as limitações às importações
(ver infografia). É já a pensar no pior que o dono de uma pequena e média
empresa da área de Lisboa, que se dedica à exportação de bebidas e alimentos em
exclusivo para Angola, começa a olhar para outros mercados. "Ou então
viro-me para outro segmento, como os medicamentos, uma vez que Angola não produz
e, em princípio, não irá limitar a importação desse produto. Mas as regras
ainda não estão definidas", diz, preferindo manter o anonimato. O facto é
que o empresário já sentiu uma diminuição das compras. "Desde o início de
janeiro que os compradores estão parados porque não há garantia de compra de
divisas. A partir de agora, sem garantia de pagamento, não vale a pena colocar
lá mais mercadoria."
Angola é o
quarto destino das exportações portuguesas, não só de bens mas de serviços,
como as viagens e turismo ou os transportes. Esta semana, a TAP decidiu
suspender a venda de bilhetes em Angola para quem quer adquirir uma viagem
Lisboa-Luanda. Nesse caso, o bilhete tem de ser comprado em Portugal. Isto
porque, diz a empresa, há escassez de dólares em Angola e limitações à
transferência de capital para fora do país. No final do ano passado, noticiou o
jornal Público, a transportadora chegou a ter 30 milhões de euros retidos em
Angola.
O refreamento da
entrada de produtos estrangeiros está também a desesperar os imigrantes
portugueses que dependem da existência de stock em Angola. É essa a razão que
leva Joaquim, responsável pelo marketing de uma multinacional de retalho, a
mostrar-se preocupado com a evolução da economia angolana. "As empresas
que importam estão com mercadorias bloqueadas pelos fornecedores porque os
bancos estão a demorar muito a fazer as transferências, apesar de termos dado
ordem de pagamento", conta. Com o vencimento habitualmente pago em
dólares, vê-se numa situação semelhante à de muitos outros compatriotas que
acumulam salários em atraso, tendo em conta a demora dos bancos. Chegado a
Luanda há quatro anos, depois de ter ficado desempregado em Portugal, Joaquim
pensa agora em mudar-se para outro país. "Existe um desconforto geral,
quer ao nível das empresas quer ao nível das pessoas, pois nem uns nem outros
estão a conseguir ter divisas. É a loucura."
Caso se
concretize a desvalorização do kwanza, que está a ser comentada em surdina, o
gestor acredita que vão fechar muitas empresas. "Principalmente as que
importam e que veem as suas dívidas a aumentarem na proporção de desvalorização
do kwanza." Desde que os problemas se agudizaram que começaram os
despedimentos. "Já há muitas pessoas a serem despedidas, e tudo pode
mudar, a começar pela segurança, caso as empresas comecem a cortar postos de
trabalho entre as classes mais baixas", antecipa.
Efeito dominó?
Para José de
Noronha Brandão, a segurança é, de facto, o grande espinho encravado na pele de
Angola. "Sempre que venho a Portugal, dou valor ao facto de deixar o carro
estacionado a 100 metros de distância e poder regressar sozinho. Lá não o
faço." De resto, afiança o diretor de relações públicas da agência Zwela
(cargo que, nos últimos dois anos, o obriga a um contínuo vaivém entre Lisboa e
Luanda), a vida continua, ainda que com algumas diferenças. "Acabaram-se
os grandes salários. As condições oferecidas estão a baixar mas continua a
existir muito trabalho." E, mesmo com os contratos a obrigarem os
estrangeiros a trabalhar em Angola a darem formação aos colegas locais, este
défice vai sentir-se seguramente por mais uma ou duas gerações, acredita. Em
vésperas de regressar a Luanda, José tem acompanhado a situação na capital
angolana. "Conheço duas pessoas que estão a pensar vir embora. Mas é
sobretudo porque estão saturadas."
Mas, por cada
otimista, há dois realistas. Maria (nome fictício), gestora de uma empresa
europeia de têxteis de luxo, traça um retrato bem mais feio. "Existem
contentores de comida no porto que não são desembargados porque o cliente não
paga e o fornecedor não entrega os papéis para descarregar a mercadoria",
diz. Os que recebem em kwanzas estão em pior situação, porque têm de ir para a
fila das casas de câmbio para tentar mandar dinheiro para Portugal. Se o fizerem
por transferência bancária, o banco não assegura o tempo que demora (e pode
levar dois ou três meses). Quem recebe em euros não tem tido dificuldades até
ao momento, mas a situação corre o risco de mudar a qualquer momento.
A empresa de
Maria tem contratos com o Estado. Por isso, caso exista um corte nestas
compras, o efeito dominó pode ser devastador. A luso-angolana explica que só
está disposta a esperar seis meses até que a situação normalize. Caso
contrário, volta a fazer as malas. Para onde? "Dubai, Noruega ou
Austrália. Existem sítios mais agradáveis para se viver..."
É o fim de um
ciclo. Mário (nome fictício), consultor fiscal numa auditora multinacional,
conta que, nos oito anos de vida que já leva em Angola, esta não é a primeira
vez que assiste às restrições de circulação dos dólares. Mas há indícios de que
alguma coisa mais estrutural, mais violenta, mais definitiva, está em
andamento. "As dificuldades começaram em dezembro, mas agora pioraram.
Antes, conseguíamos levantar 200 dólares por dia com o cartão de crédito, agora
só 60." A escassez dos dólares também lhe trouxe dois meses de salários em
atraso. "Todos os dias, a minha mulher leva 60 euros e depois vai-me
depositando na conta de Angola. Mas do meu salário ainda tenho de pagar as contas
da família em Portugal." E tudo será ainda mais complicado quando as
empresas deixarem de conseguir pagar as importações de bens de primeira
necessidade como alimentação e medicamentos. "Sei de uma petrolífera em
que 200 trabalhadores foram de férias de Natal e já não vão regressar."
Quem pode, diz,
começa a tentar ir para Moçambique. Nota-se também menos portugueses a chegar
nos últimos tempos. "Tenho um plano B, estou a tentar mudar-me para outra
empresa com negócios no Gabão, Guiné Equatorial e Moçambique. Mas acredito que
90% dos portugueses que aqui estão não têm um plano alternativo nem forma de se
sustentar em Portugal."
A resposta que
todos tentam agora encontrar é saber qual é a próxima Angola. O próximo El
Dorado. Mas a verdadeira pergunta é outra: haverá mais algum El Dorado?
Um tesouro
chamado dólar
"As casas
de câmbio atendem durante uma hora e depois acabam-se os dólares. As filas em
Luanda começam à meia-noite, quando as casas de câmbio só abrem às dez da
manhã. ?É uma loucura", descreve Maria, gestora em Angola. Nas últimas
semanas, a corrida aos dólares, trancados pelo Banco Nacional, assumiu
proporções gigantescas. Nos bancos, um dólar vale 105 kwanzas. Mas como os
bancos deixaram de aceitar o câmbio, as quinguilas, as mulheres que vendem os
dólares nas ruas, desesperam para arranjar as notas norte-americanas. Nem o
mercado negro consegue dar conta do recado. Quem as consegue arranjar, encontra
os dólares por 170 kwanzas. Uma disparidade, quando há umas semanas se
conseguia o câmbio paralelo por uns 100 kwanzas. Em Portugal, as casas de
câmbio como a Novacâmbios deixaram de aceitar kwanzas, porque "não
conseguimos vender kwanzas ao BIC, o único banco em Portugal autorizado a
exportar esta moeda", conta João Rocha, administrador da Novacâmbios.
visao.sapo.pt
ANGOLA24HORAS
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